Nachiketa e a arte de morrer

Se há um ponto de separação definitivo, então esse é certamente o momento da morte. Quando somos confrontados com o mistério da morte, nossa existência nos parece repentinamente irreal. Quem sou eu? Para onde esta vida me conduz? Será que tudo é efêmero? Isso é o que se pergunta o jovem Nachiketa nos Upanixades. Sua busca conduz à realidade.

Quando somos confrontados com o mistério da morte, nossa existência nos parece repentinamente irreal. Afinal, como podemos chamar de “real” algo que muda continuamente?
É verdade que experimentamos nossa própria vida como uma realidade, mas fazemos essa experiência numa existência relativa, onde o medo da morte é frequentemente justificado, o medo de que tudo o que é conhecido nesta existência relativa pereça.

Vista de uma perspectiva mais profunda – a de nosso ser essencial não-relativo – nossa existência relativa é uma ilusão. Mas, então, que relação existe entre os dois? Seria aqui a morte a linha de demarcação? Hermes diz: “Nunca houve, não há, nem jamais haverá no mundo algo que esteja morto. O Pai quis que o mundo fosse vivo enquanto se mantivesse sua coesão; por isso ele é necessariamente Deus.” (A Arquignosis Egípcia, tomo 4, 31-32, p. 17)

Considerado desse ponto de vista hermético, que quer então dizer “morrer”? Jan van Rijckenborgh escreve: “Tudo é vida, um oceano vivente de átomos. Cada corpo é, portanto, vida. E cada vida também possui, portanto, consciência. Cada consciência possui uma força ilimitada e, por conseguinte, divina, pois o átomo é vida. E vida apenas pode explicar-se pela fonte primordial. Visto que vosso estado corpóreo, vosso estado de personalidade, é formado por átomos, o fundamento de vosso ser é, portanto, Deus. Deus manifestado na carne.” (A Arquignosis Egípcia, tomo 4, p. 111)

A definição de morte clínica foi formulada em 1864 por Bouchot conforme se segue: “A morte ocorre quando o coração deixa de bater”. Hoje, considera-se que, para tratar-se de morte, a circulação do sangue deve também parar após aproximadamente cinco minutos. Mas, devido a todas as novas técnicas, os médicos não sabem de fato com precisão em que momento a morte é definitiva. Alguns pensam que já estamos mortos quando perdemos nossa personalidade e já não temos pensamentos conscientes.

Quando perdemos a consciência, por exemplo, pode-se ainda medir nossa atividade cerebral. Mas, o que devemos pensar quando o coração continua a bater de modo autônomo, quando já não há respiração e uma morte clínica total foi constatada – portanto também a do tronco cerebral? A pessoa encontra-se num estado de coma irreversível e, no entanto, pode acontecer que seu sistema viva mais uma semana ou até mais algum tempo.

Isso é ainda mais verdadeiro no que concerne a nossos genes, muitos dos quais continuam a viver ainda algum tempo ou podem até ser vivificados. Portanto, de um ponto de vista biológico, não podemos afirmar que haja um momento único de “morte”; falaríamos mais de uma quantidade de curtos instantes de morte. Dito de outro modo, morremos pouco a pouco. E a determinação de um momento preciso de morte depende, portanto, de uma convicção filosófica ou religiosa.

Não se trata de um acontecimento pontual, mas de um processo. Por isso, atualmente questiona-se muito a respeito do exato momento para retirar um órgão para transplante. Não deveríamos administrar ao falecido um analgésico ou uma anestesia para essas operações? Seja como for, a ideia de que vários instantes de morte ocorrem não pode parecer insólita a uma pessoa orientada para o aspecto esotérico ou espiritual da existência, pois ela não ignora que nossos corpos – material, etérico, astral e mental – são formados em momentos diferentes.

Contudo, a perspectiva segundo a qual J. van Rijckenborgh observa essas coisas é ainda mais ampla. Em A Gnosis original egípcia I (pp.81-82), ele diz: “O homem do qual falam e testemunham a Doutrina universal e a Bíblia é completamente diferente da forma do corpo que é erroneamente tomada como homem. Sois seres duais. Em vós o verdadeiro homem anseia pela libertação, o verdadeiro homem, aquele que está aprisionado em vossa forma natural. Conservando isso diariamente diante dos olhos, prestais um grande serviço a vós mesmos. (…) O verdadeiro homem, aprisionado na forma natural, não é formado de vida e de luz, mas ele é vida e luz. Ele é Deus”. E os Upanixades testemunham igualmente de uma perspectiva particular quando dizem: “Os sentidos estão voltados para o exterior. Por isso o homem olha para o exterior e não para o Ser interior. Somente alguns sábios voltam a cabeça para o Ser interior, com a vista orientada para o interior. Desejando a imortalidade, eles se afastam da percepção sensorial.”.

O ensinamento da libertação sugere que é possível morrer para a existência relativa ilusória durante nossa vida, portanto, sem esperar pela morte do corpo. Por isso, a ideia de voltarmos nossa atenção para o ser essencial nos é igualmente ensinada, bem como a necessidade de tomarmos consciência de que em nossa existência relativa não somos nós que estamos ligados à origem do movimento das coisas e dos acontecimentos.
A força que nos impulsiona a voltar nosso olhar para nosso ser essencial provém justamente desse ser essencial mesmo.

Em nossa existência relativa, não somos nós quem move as coisas e os acontecimentos

Nachiketa

Nos Upanixades, há também a história de Nachiketa, que foi tomado pelo mistério da morte desde tenra idade: “Quem sou eu? Para onde esta vida me conduz? Será que tudo é efêmero ou há em mim algo que continuará a viver?”

A história nos diz que o pai de Nachiketa levava oferendas aos deuses porque aspirava “por uma recompensa celeste”. Mas ele oferecia especialmente vacas velhas, que já não podiam nem comer nem beber, nem parir um bezerro, nem dar leite. E Nachiketa ficava muito triste pela mesquinharia dessas doações. Tanto, que um dia perguntou a seu pai: “Qual é a utilidade disso?” Seu pai ficou irritado pela pergunta crítica do filho e bradou: “Como ousa você perguntar tal coisa?” Então Nachiketa fez-lhe a seguinte pergunta: “Pai, a quem você gostaria de me oferecer?” E repetiu ainda duas vezes a mesma pergunta. Depois de ter sido interrogado três vezes, seu pai lhe respondeu colérico: “Você eu daria a Yama, o Deus da Morte”. Foi assim que Nachiketa partiu em direção da morada de Yama, o Senhor da Morte.

Se partirmos da ideia de que toda essa história acontece em nós mesmos, então podemos ver o pai como o homem tradicional em si, que leva em conta as formas exteriores, mas que perdeu contato com a fonte da inspiração espiritual. Esse homem exterior tem apenas “vacas velhas” a oferecer, animais dos quais a vida já se foi. Em seu estado sensorial condicionado, obscurecido pela quantidade e pela qualidade das coisas do espaço-tempo, ele não pode perceber o interior.

O nome Nachiketa significa “não percebido”. Ele é o símbolo do interior, do homem espiritual. Quando o homem ouve a pergunta do interior não percebido, ou seja, quando ele reage ao impulso tríplice, então isso é como o nascimento de um filho interior, por meio do qual o conhecimento da vida e da morte se torna visível.

A história descreve como o filho acaba chegando à entrada da morada de Yama, o Deus da Morte. Este estava ausente nesse momento e Nachiketa, então, teve de esperar, como convidado, durante três dias, sem comer nem beber. Quando finalmente retorna à casa, Yama o chama, reconhecendo seu erro: “Oh, Brâman, por ter permanecido como convidado de honra em minha casa durante três noites, sem comer nem beber, você pode fazer três pedidos”, pois Nachiketa se abstivera durante três noites de seus antigos condicionamentos, como Jesus na tentação do deserto.

Graças à receptividade de Nachiketa, os três impulsos se tornaram: ideação, meditação e realização. Yama não tem dificuldade alguma em satisfazer o primeiro desejo de Nachiketa de que, quando voltasse, seu pai, finalmente acalmado, o saudasse alegremente: o velho homem é então tocado na consciência do ego e se abre ao impulso interior, ele reconhece o interior.

Também o segundo desejo de que Yama mostrasse a Nachiketa o caminho para o Céu e a maneira de acender o fogo sagrado foi executado sem hesitação: um caminho de devoção e devotamento, pelo qual a velhice e a morte poderiam ser vencidas. É a ligação consciente com a luz fundamental do ser. “É isso o que sou verdadeiramente”, compreendia ele a cada momento de sua vida. Essa tomada de consciência iluminadora, no entanto, não basta para atravessar definitivamente a fronteira.

Foi por isso que Nachiketa fez a terceira pergunta: “Quando um ser humano visível morre, uma grande incerteza paira na mente das pessoas; alguns dizem que ele ainda vive; outros, que parou de viver. Diga-me: o que há depois da morte? Isso eu gostaria muito de saber. É meu terceiro pedido”.

De fato, Nachiketa faz aqui a pergunta impossível: ele pergunta se, depois da morte do homem, algo de eterno subsiste ou se, sendo uma aparição provisória, nada nele sobrevive.

Sua pergunta refere-se ao ser real que está além da vida e da morte, do tempo e do espaço e, portanto, além das possibilidades de Yama. Por isso, como resposta à sua terceira pergunta, Yama suplica dizendo: “Mesmo os deuses de outrora tinham dúvidas sobre isso, pois verdadeiramente não é fácil de compreender, ao contrário, é muito obscuro. Escolha outra pergunta, ó Nachiketa, outra! E não insista! Poupe-me desta!”

A situação precária está ameaçada de ser definitivamente abandonada; as regras da vida e da morte são, nesse momento, perfeitamente visíveis. E Yama oferece-lhe, então, todas as alegrias e os prazeres terrestres, todas as riquezas e tantos anos na terra quantos ele desejasse, desde que não tivesse de responder a essa pergunta: “Escolha ser centenário, ter filhos e netos, muito gado e elefantes, ouro e cavalos. Escolha fazendas agrícolas e, para você, tantos outonos quantos puder desejar; escolha a abundância e uma vida longa. Seja grande na terra, Nachiketa. Eu o farei desfrutar de todas as suas luxúrias. O que é difícil de receber neste mundo, peça a mim com toda tranquilidade. Carruagens com alaúdes, belas ninfas como mortal algum poderia sonhar. Estas, dadas por mim como presentes, deixe que o sirvam. Mas, Nachiketa, não me pergunte nada sobre a morte!”.

Escolha outra pergunta, Nachiketa, outra! E não insista!

Nada, porém, realmente nada poderia dissuadir Nachiketa de fazer sua profunda pergunta, pois ela ultrapassava todas as coisas aparentes. Ele respondeu: “Revele-me o mistério da imortalidade! Porque tudo que você propõe, ó Yama, são prazeres que amanhã já não existirão. Eles privam os órgãos dos sentidos de sua inteligência. Nossa vida inteira é bem curta. Pode guardar suas carruagens, suas danças e seus cantos. Possuir apenas não é suficiente para um ser humano. Assim que vemos você, nada mais possuímos. Vivemos o tempo que você permite. O desejo que eu gostaria de ver realizado permanece o mesmo”.

Esse desejo, “esse profundo desejo oculto”, e nenhum outro, permanece a escolha de Nachiketa.

Quando Nachiketa exprimiu seu desejo pela terceira vez, o Senhor da Morte teve de abdicar. Ele admirou o devotamento resoluto desse rapaz tão singular à verdade. No entanto, ele queria antes se assegurar de que o rapaz era realmente confiável, e que isso não vinha de uma lição aprendida ou de uma exibição imprudente.

Nesse momento, ele tem certeza de que Nachiketa estava suficientemente preparado para receber esse saber e lhe diz: “Você, Nachiketa, depois de ter cuidadosamente pesado todos os objetos queridos e atraentes do desejo que estavam ao seu alcance, renunciou a eles. Você não é aventureiro no caminho da inclinação estúpida por riqueza na qual tantos se afogaram. Oh, pudéssemos nós sempre encontrar buscadores como você!”

Assim, ele finalmente instrui Nachiketa com as seguintes palavras: “Quem o reconhece como Deus, que é claramente visível em segredo, que vive no silêncio, que habita nas profundezas, abandona, assim, sofrimento e alegria. Menor que pequeno, maior que grande é a essência divina que habita no coração da criatura. Quem está livre do desejo e do sofrimento, contempla sua glória mediante a graça do Criador”.

Como não poderia ser de outro modo, Yama se vê obrigado a revelar o mais elevado conhecimento a Nachiketa: “Não se encontra esse ser imortal mediante estudo ou somente pelo pensamento, nem mediante o falar, o escutar ou o ouvir. A quem nada conhece senão o desejo do Ser, a esse, o Ser Divino se mostra em sua natureza sublime; encontrar esse ser exige do buscador da verdade devotamento absoluto e orientação única à meta.

Quem se doa inteiramente a esse único ponto, sabe com absoluta certeza que o Ser Imortal vive profundamente nele. Quem encontra o Ser Divino em seu próprio coração, encontra em si mesmo o repouso e a paz que busca: ele vê o ser mais elevado em tudo o que vive e se move; servindo a esse Ser, ele se eleva no Todo Divino”.

A meta é o si mesmo, o Ser interior, incognoscível para o eu. Quando o coração do homem alcança o repouso, o Ser encontra a si mesmo diretamente por meio de sua forma aparente relativa. Não pode ser de outro modo, pois a flecha e o alvo não estão separados. Assim, o Senhor da Morte surge como o grande sábio interior, uma pedra de toque, mas ao mesmo tempo um amigo no caminho. Ele é o criador e o destruidor. “Criar e destruir” significa que, no mundo do qual fala Hermes na citação da introdução, tudo é sempre novo. Não é o que acontece na existência que conhecemos. Somos, por assim dizer, incidentes cristalizados no movimento eterno. Essa é a razão pela qual a energia do microcosmo, por seu duplo aspecto destruidor e revelador, oferece ao ser espiritual em nós, a cada vez, uma nova chance para que o grande processo da transfiguração possa realmente se produzir.

“Porque morte”, diz Hermes, “significa aniquilação; mas nada do que está no mundo é aniquilado.” (A Arquignosis Egípcia, tomo 2, versículo 3, p. 287). Somente o que é composto se transforma novamente ao se decompor. Nosso verdadeiro ser não é o resultado de um aglomerado; ele vive além da morte e sempre se renova!

Se nos voltássemos agora para nossa morte corporal, então a questão que poderia surgir seria: mas isso significa que não temos mais tristeza quando um ser querido nos deixa? Claro que há tristeza!

Amar e ficar triste por causa disso são estados que não existem por acaso.

Os laços energéticos entre o falecido e nós são quebrados; todos eles têm também seu próprio momento de dissolução. Esses laços partidos são como uma ferida e necessitam de tempo para poder se retirar e curar. Amar alguém ou algo e a tristeza de perder alguém ou algo são verdadeiros processos que têm lugar no relativo.

Nosso ser, no entanto, situa-se além do relativo e do composto e vê com amor tudo que aparece e desaparece. A alma sabe que uma grande falta não pode ser preenchida por outra, mas somente pelo Outro, o ser essencial não relativo. Essa descoberta é totalmente terapêutica e vivificante, conforme termina a história de Yama e Nachiketa na Katha Upanixades.

Está escrito: “Esse Outro em nós, esse Ser, é como o fogo sem fumaça. Ele habita profundamente oculto em cada homem, na cavidade do coração. Ele é mestre do tempo, do presente, do futuro e do passado. Ele é imutável, sempre o mesmo; em tudo que é Ele é.”

Nesse “não saber”, nessa “disposição para morrer”, Nachiketa encontra em si mesmo Brahma, o Único, e é libertado das paixões e da morte. ◊

ESPERANÇA DE VIDA
“Aproxima-se o tempo em que os desenvolvimentos médicos referentes a nosso envelhecimento são mais acentuados”, pensa Aubrey de Grey. “O é que o ritmo segundo o qual as pessoas envelhecem torna-se mais lento que o desenvolvimento da ciência médica é capaz de nos restabelecer”.
Em seu último livro Imortal, o doutor Terry Grossman escreve: “Acredito que em uma vintena de anos seremos capazes de identificar os genes responsáveis pelo processo de envelhecimento. Se conseguirmos mudá-los ou expulsá-los seremos então verdadeiramente fortes. Acredito que as expectativas de vida de 200 anos ou mais serão realistas”.

Pentagrama no 3 / 2017

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